sexta-feira, maio 31, 2013

Anotações sobre a modernidade na obra de Anthony Giddens

Tradição e modernidade: continuidade e descontinuidade

O que é a tradição? “A tradição, digamos assim, é a cola que une as ordens sociais pré-modernas”, afirma Giddens. A tradição envolve, de alguma forma, controle do tempo.“Em outras palavras, a tradição é uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência para o presente”. (GIDDENS, 1997: 80)

A Tradição integra e monitora a ação à organização tempo-espacial da comunidade (ela é parte do passado, presente e futuro; é um elemento intrínseco e inseparável da comunidade). Ela está vinculada à compreensão do mundo fundada na superstição, religião e nos costumes; ela pressupõe uma atitude de resignação diante do destino, o qual, em última instância, não depende da intervenção humana, do “fazer a história”. Dessa forma, conhecer é ter habilidade para produzir algo e está ligado à técnica e à reprodução das condições do viver. A ordem social sedimentada na tradição expressa a valorização da cultura oral, do passado e dos símbolos enquanto fatores que perpetuam a experiência das gerações.

Por outro lado, a tradição também se vincula ao futuro. Mas este não é concebido como algo distante e separado, mas como uma espécie de linha contínua que envolve o passado e o presente. É a tradição que persiste, remodelada e reinventada a cada geração. Não há um corte profundo, ruptura ou descontinuidade absolutas entre o ontem, hoje e o amanhã.

A tradição envolve o ritual; este constitui um meio prático de preservação. Nas sociedades que integram a tradição, os rituais são mecanismos de preservar a memória coletiva e as verdades inerentes ao tradicional. O ritual reforça a experiência cotidiana e refaz a liga que une a comunidade, mas ele tem uma esfera e linguagem próprias e uma verdade em si, isto é, uma “verdade formular” que não depende das “propriedades referenciais da linguagem”. Pelo contrário, “a linguagem ritual é performativa, e às vezes pode conter palavras ou práticas que os falantes ou os ouvintes mal conseguem compreender. (...) A fala ritual é aquela da qual não faz sentido discordar nem contradizer – e por isso contém um meio poderoso de redução da possibilidade de dissenção”. (Id.: 83)

A “verdade formular” na qual se funda o ritual necessita do intérprete, e este é o guardião da tradição. Ele se caracteriza pelo status, isto é, o papel que ocupa na ordem tradicional. Diferentemente do perito, o especialista da ordem social moderna, o conhecimento do guardião conhecimento se reveste de mistério, se funda na pura crença e tem um sentido místico inacessível ao comum, ao leigo:

“A tradição é impensável sem guardiães, porque estes têm um acesso privilegiado à verdade; a verdade não pode ser demonstrada, salvo na medida em que se manifesta nas interpretações e práticas dos guardiães. O sacerdote, ou xamã, pode reivindicar ser não mais que o porta-voz dos deuses, mas suas ações de facto definem o que as tradições realmente são. As tradições seculares consideram seus guardiães como aquelas pessoas relacionadas ao sagrado; os líderes políticos falam a linguagem da tradição quando reivindicam o mesmo tipo de acesso à verdade formular”. (Id.: 100)

A interpretação monopolizada pelo guardião constitui uma verdade acessível apenas aos iniciados, isto é, aos que aceitam a verdade revelada por ele e, conseqüentemente, o seu status. A tradição é intrinsecamente excludente: apenas os iniciados, os admitidos, podem participar e compartilhar da sua verdade, do ritual. A discriminação do não-iniciado, o “outro”, é fundamental para fortalecer o status do guardião e do ritual em si. O “outro” está fora, a verdade formular lhe é interdita. A identidade do “eu” vincula-se ao envolvimento com o ritual e, portanto, diferenciação em relação ao “outro”.

Nas condições da modernidade, o ritual é reinventado e reformulado. O mesmo ocorre com o guardião, substituído pelo especialista, o perito. A modernidade reincorpora a tradição, reinventa-a, e, neste sentido, também expressa continuidade. Grande parte dos valores relacionados à tradição permanecem e se reproduzem no âmbito da comunidade local. Na verdade, as primeiras instituições da modernidade não podiam desconsiderar a tradição preexistente e, vários aspectos, dependiam delas.

“Somente com a consolidação do Estado-nação e a generalização da democracia nos séculos XIX e XX, a comunidade local efetivamente começou a se fragmentar. Antes deste período, os mecanismos de vigilância eram primariamente “de cima para baixo”; eram meios de controle cada vez centralizados sobre um espectro de “indivíduos” não mobilizados”. (Id.: 115)

Porém, a modernidade teve que “inventar” tradições e romper com a “tradição genuína”, isto é, aqueles valores radicalmente vinculados ao passado pré-moderno. A modernidade, neste sentido, expressa descontinuidade, a ruptura entre o que se apresenta como o “novo” e o que persiste como herança do “velho”. A modernidade expressa:

a) ruptura com a idéia de comunidade (una e corporificada no dirigente) e passagem à idéia de sociedade (dividida em interesses conflitantes, classes antagônicas e grupos diversificados);

b) ruptura com a idéia e a prática teológico-política do poder político encarnado na pessoa do dirigente e passagem à idéia da dominação impessoal ou da dominação racional, isto é, nascimento da idéia moderna de Estado.

Para Giddens, a modernidade “refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”. (1991: 11). Ele observa que vivemos uma época marcada pela desorientação, pela sensação de que não compreendemos plenamente os eventos sociais e que perdemos o controle. A modernidade transformou as relações sociais e também a percepção dos indivíduos e coletividades sobre a segurança e a confiança, bem como sobre os perigos e riscos do viver:

“A modernidade, pode-se dizer, rompe o referencial protetor da pequena comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito maiores e impessoais. O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e o sentido de segurança oferecidos em ambientes mais tradicionais”. (GIDDENS, 2002: 38)

Para Giddens, não basta inventar novas palavras para explicar este redemoinho, mas sim olhar com atenção a própria modernidade e analisar as suas conseqüências. Eis a sua tese:

“Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes. Além da modernidade, devo argumentar, podermos perceber os contornos de uma ordem nova e diferente, que é “pós-moderna”; mas isto é bem diferente do que é atualmente chamado por muitos de “pós-modernidade”. (1991: 12-13)

Ele analisa a modernidade enquanto descontinuidade entre as ordens sociais tradicionais e as instituições sociais modernas. Quais as características desta descontinuidade?

1) o ritmo de mudança que a era da modernidade põe em movimento;

2) o escopo da mudança, isto é, a abrangência global desta;

3) a natureza das instituições modernas (o sistema político do Estado-nação, a dependência por atacado da produção de fontes de energia, a transformação em mercadoria de produtos e trabalho assalariado)

Mecanismos de Desencaixe: Fichas Simbólicas e Sistemas Peritos

A separação tempo-espaço propicia a condição para o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe. Vejamos a definição de Giddens (1991):

“Por desencaixe me refiro ao “deslocamento” das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço”. (Id.: 29)

“Este [desencaixe] retira a atividade social dos contextos localizados, reorganizando as relações sociais através de grandes distâncias tempo-espaciais”. (Id.: 58)

Os mecanismos de desencaixe são representados por Fichas Simbólicas e Sistemas Peritos:

“Por fichas-simbólicas quero significar meios de intercâmbio que podem ser “circulados” sem ter em vista a s características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular”. (Id.: 30)

O dinheiro constitui um exemplo de Ficha Simbólica. Por que?

“O dinheiro, pode-se dizer, é um meio de retardar o tempo e assim separar as transações de um local particular de troca. (...) é um meio de distanciamento tempo-espaço. O dinheiro possibilita a realização de transações entre agentes amplamente separados no tempo e no espaço”. (Id.: 32)

“Ele é fundamental para o desencaixe da atividade econômica moderna”. (Id.: 33)

Na sociedade moderna nos encontramos permanentemente vinculados a sistemas abstratos, isto é, sistemas com os quais interagimos cotidianamente e que não se dependem diretamente de um conhecimento aprofundado da nossa parte sobre o seu funcionamento (o sistema bancário, a informática, os recursos que envolvem uma viagem de avião são exemplos). Nestes e noutros casos, confiamos em peritos, especialistas. Giddens (Id.:35), define-os: “Por sistemas peritos quero me referir a sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”.

É verdade que não consultamos peritos o tempo todo. Mas estes sistemas, nos quais encontra-se integrado o conhecimento dos especialistas, influencia continuamente muitos dos aspectos do nosso ser e agir cotidianos. Eles “criam grandes áreas de segurança relativa para a continuidade da vida cotidiana” (GIDDENS, 2002: 126). Por outro lado, os sistemas peritos atuam como mecanismos de desencaixe – porque removem as relações sociais das imediações do contexto.

Nas sociedades tradicionais, pré-modernas, a autoridade reside no território dos guardiães – os quais fornecem as interpretações fundadas na verdade formular. “A pessoa detentora do saber ou sábia é o repositório da tradição, cujas qualidades especiais originam-se daquele longo aprendizado que cria habilidades e estados de graça”, afirma Giddens (1997:104) A legitimidade do especialista também se funda no saber, mas este já não é seu monopólio e nem pode estar seguro de que a posse deste garante-lhe, de maneira automática, a confiança; e, muito menos, que sua verdade será incontestável. Sua posição enquanto perito advém basicamente do desequilíbrio entre as suas habilidades e informações e as do leigo. Porém, nas condições modernas, a especialização é sempre uma possibilidade para o leigo e, de qualquer forma, os recursos disponíveis e a circulação de conhecimento coloca este numa posição mais vantajosa do que o não-iniciado na sociedade pré-moderna. Como resume Giddens (Id.: 105):

1) a especialização é desincorporadora[1] (abandono do conteúdo tradicional), não tem um local restrito (mas vários), é descentralizada e se baseia em princípios impessoais;

2) não está vinculada à verdade formular, mas à crença na possibilidade de que um saber “x” é correto;

3) o acúmulo de conhecimento especializado envolve processos intrínsecos de especialização;

4) a confiança em sistemas abstratos, sistemas peritos, não é gerada mecanicamente pelo saber em si, pelo saber esotérico;

5) a especialização interage com a reflexividade institucional crescente, o que pressupõe processos cotidiano de perda e reapropriação de habilidades e conhecimentos.

O saber do especialista está ligado a um conhecimento universalizante. Os especialistas tendem a discordar entre si e a crítica é essencial para o seu empreendimento. Popper observou que a ciência está edificada sobre a areia movediça, isto é, ela não tem fundamento estável e o ceticismo metódico é o seu princípio. A ciência precisou se impor enquanto uma verdade, pelo menos em seus primórdios, quase tão sagrada quanto o saber com quem ela rivalizava. Porém, com o passar do tempo, ela perdeu em muito a áurea de autoridade que chegou a possuir. “De certa forma, isso provavelmente é resultado da desilusão com os benefícios que, associados à tecnologia, ela alega ter trazido para a humanidade”, ressalta Giddens (Id.:109)

De fato, a ciência não se mostrou tão certa e segura das suas afirmações – o que parecia verdadeiro num determinado contexto histórico, revelou-se falso em outras condições. Ela teve que levar em conta as incertezas e o próprio questionamento à sua verdade, elaborados fora e dentro do seu âmbito. Nas condições modernas, e esta é uma das conseqüências da modernidade, essa incerteza, que gera insegurança, atinge o âmago da experiência vivenciada, o cotidiano das pessoas. “Nas condições sociais modernas, todos os experts são especialistas. A especialização é intrínseca a um mundo de alta reflexividade, onde o conhecimento local é informação reincorporada, derivada de sistemas de um ou de outro tipo”, assinala Giddens (Id.: 110). Nos sistemas peritos, a confiança se funda na suposição da competência técnica; é um saber passível de revisão.

“O conhecimento especializado está aberto à reapropriação a qualquer pessoas com tempo e recursos necessários para ser instruída; e a prevalência da reflexividade institucional significa que há uma contínua triagem de teorias, conceitos e achados especializados em relação à população leiga”. (Id.: 113)

Quem confia tem, em geral, uma atitude fundada no ceticismo metódico, ou seja, pode retirar a sua confiança a qualquer momento. O especialista vê-se, assim, constantemente inclinado a reforçar o seu saber diante do leigo. Seus recursos variam desde o preço cobrado numa consulta até a reinvenção da tradição: Giddens (Id.: 111) observa, não sem ironia, que “os títulos e os diplomas dependurados na parede do consultório de um psicoterapeuta são mais que meramente informação; são um eco dos símbolos com os quais se cercam de figuras de autoridade tradicionais”.

Reflexividade Institucional e o Carro de Jagrená

A reflexividade constitui a terceira fonte de dinamismo da modernidade. A reflexividade da modernidade significa que as práticas sociais modernas são enfocadas, organizadas e transformadas, à luz do conhecimento constantemente renovado sobre estas próprias práticas. Nas condições da modernidade reflexiva o conhecer não significa estar certo, ou seja, o conhecimento está sempre sob dúvida e incide sobre as práticas sociais e estas sobre o mesmo. E isto se aplica tanto às ciências sociais quanto às naturais.

Por outro lado, a característica reflexiva da sociedade moderna indica a possibilidade de uma contínua geração de autoconhecimento sistemático, o qual, em geral, desestabiliza a relação entre conhecimento leigo e saber especializado (sistemas peritos).

O conhecimento (científico, especializado e leigo) é o meio da modernização reflexiva. Aplicado à atividade social, este conhecimento é filtrado pelos seguintes fatores:

1) Poder diferencial: a depender da capacidade individual (ou de grupos) de se apropriar de conhecimento especializado[2];

2) Papel dos valores: valores e conhecimento empírico se vinculam através de uma rede de influência mútua;

3) Impacto das conseqüências não-pretendidas: o conhecimento sobre a vida social transcende as intenções dos sujeitos;

4) Circulação do conhecimento social: o conhecimento aplicado altera as circunstâncias às quais ele originalmente se referia.

A modernidade reflexiva rompe com o ideal iluminista[3] de um saber fundado na razão e capaz de superar a superstição e os dogmas da tradição[4], gerando uma nova certeza – a segurança ontológica – que supere o caráter arbitrário do hábito e do costume.[5] Parecia aos iluministas – e aos seus sucessores – que a crescente informação sobre o mundo social e natural resultaria num controle igualmente crescente sobre eles. Essa pretensão de controle era, para muitos, a chave para a felicidade humana. Esta tenderia progresso e, portanto, ao aperfeiçoamento da ordem social e das condições de vida. A modernidade amplia as oportunidades e também os riscos, mas o ideal iluminista do controle do conhecimento se imagina capaz de equilibrar ambos.

É verdade que, como afirma Giddens (1991: 58-59): “A produção de conhecimento sistemático sobre a vida social torna-se integrante da reprodução do sistema, deslocando a vida social da fixidez da tradição”. Porém, o conhecimento reflexivo da modernidade solapa a certeza inerente a este, mesmo no domínio das ciências naturais. Isto significa que na modernidade a ciência é posta constantemente sob dúvida, sempre sujeita à revisão – uma certeza, um paradigma pode ser (e é) ultrapassado por novas descobertas. Dessa forma, o conhecimento sempre está sob prova e o risco de ser descartado. A reflexividade moderna potencializa este processo.

As características da modernidade, suas fontes de dinamismo (separação tempo-espaço, desencaixe e ordenação e reordenação reflexiva) produzem efeitos observáveis nas experiências do cotidiano, expressas na sensação de insegurança, ansiedade, perigos e incertezas. Anthony Giddens compara a modernidade ao Carro de Jagrená.[6] Esta metáfora traduz bem as conseqüências da modernidade. A modernidade moldou o mundo natural e social à imagem humana, mas produziu um mundo fora de controle, muito diferente daquele que o iluminismo antecipou. Isto nos impõe algumas questões: Por que a razão não controla o carro? Seria defeito do projeto ou falhas do operador? Segundo o autor, “nem os defeitos do projeto nem a falha do operador são os elementos mais importantes a produzir o caráter errático da modernidade. As duas influências mais significativas são (...): as conseqüências involuntárias e a reflexividade ou circularidade do conhecimento social”. (Id.:152)

Em condições de globalização o carro tende a ficar cada vez mais incontrolável e descontrolado.

Modernidade, globalização e Segurança Ontológica

A metáfora do Carro de Jagrená indica que a modernidade produziu um mundo perigoso, como um veículo desgovernado, o qual não podemos controlar, mas também não temos como “pular fora”. A sociedade atual é identificada a sentimentos de desorientação e mal-estar. Estamos num período de transição, de liminaridade.

“A modernidade é inerentemente globalizante”, afirma Giddens. (1991: 69) A era da globalização impõe transformações universalizantes que reconfiguram a tradição, seu abandono ou desincorporação. O local encontra-se de tal forma conectado ao global que influencia e é influenciado por este. A tradição vivenciada no locus do cotidiano, no espaço específico, é colocada em questão pela experiência vivenciada do indivíduo no tempo e espaço global. Por outro lado, o local também problematiza o global. Como nota Giddens:

“Poucas pessoas, em qualquer lugar do mundo, podem continuar sem consciência do fato de que suas atividades locais são influenciadas, e às vezes até determinadas, por acontecimentos ou organismos distantes”. (1997: 74)

“O reverso da medalha é menos evidente. Hoje em dia, as ações cotidianas de um indivíduo produzem conseqüências globais. Minha decisão de comprar uma determinada peça de roupa, por exemplo, ou um tipo específico de alimento, tem múltiplas implicações globais”. (Id.: 75)

Há uma interdependência cada vez maior entre o espaço global e o local. O global tem influência sobre as vidas individuais nos espaços locais; mas também as decisões dos indivíduos em seu cotidiano podem influenciar sobre os resultados globais. Esta inter-influência incide sobre as coletividades e grupos de todos os tipos, incluindo o Estado. Todos têm que levar em consideração essa realidade, o que pressupõe repensar os papéis, sua reorganização e reformulação.

A modernidade nas condições da globalização amplia tanto as oportunidades quanto as incertezas e os perigos. Daí a sensação de mal-estar e de desorientação. O mundo tornou-se cada vez mais um lugar inseguro e essa insegurança é sentida pelo indivíduo em sua mais remota comunidade. A experiência da modernidade em tempos globais colocou por terra as certezas: as surpresas e os riscos estão sempre à espreita e o futuro parece uma impossibilidade se pensado enquanto construção histórica a partir do passado e do presente. A modernidade na globalização se assemelha a uma grande e perigosa aventura, à qual, independente da nossa vontade, estamos presos e temos que participar:

“A experiência global da modernidade está interligada – e influencia, sendo por ela influenciada – à penetração das instituições modernas nos acontecimentos da vida cotidiana. Não apenas a comunidade local, mas as características íntimas da vida pessoal e do eu tornam-se interligadas a relações de indefinida extensão no tempo e no espaço. Estamos todos presos às experiências do cotidiano, cujos resultados, em um sentido genérico, são tão abertos quanto aqueles que afetam a humanidade como um todo. As experiências do cotidiano refletem o papel da tradição – em constante mutação – e, como também ocorre no plano global, devem ser consideradas mp contexto do deslocamento e da reapropriação de especialidades, sob o impacto da invasão dos sistemas abstratos. A tecnologia, no significado geral da “técnica”, desempenha aqui o papel principal, tanto na forma de tecnologia material da especializada expertise social”. (GIDDENS, 1991: 77)

As experiências do cotidiano na modernidade globalizada vinculam-se às questões fundamentais relativas à identidade, à percepção do “eu” e do “outro”; e, por outro lado, envolvem múltiplas mudanças e adaptações na vida cotidiana. Em tais circunstâncias, os indivíduos “sentem-se no ar” e, inseguros, se apegam à tradição. Os indivíduos resistem localmente à globalização e, simultaneamente, não podem desconsiderá-la.

A modernidade solapa a confiança fundada nos valores tradicionais e pressupõe um novo ambiente em que possa se desenvolver a “segurança ontológica”, isto é, o “ser no mundo”. A segurança ontológica “se refere à crença que a maioria das pessoas têm na continuidade de sua auto-identidade e na constância dos ambientes de ação social e material circundantes”. (Id.: 95) Ela diz respeito ao sentimento que temos sobre a continuidade das coisas e das pessoas; um sentimento inculcado desde a infância e que se vincula à rotina e à influência do hábito. A necessidade de “segurança ontológica” produz um novo ambiente de confiança, como podemos observar no quadro abaixo (Id.: 104):

AMBIENTE de CONFIANÇA
PRÉ-MODERNAS

Contexto geral: importância excessiva na confiança localizada

1. Relações de parentesco: como um dispositivo de organização para estabilizar laços sociais através do tempo-espaço.

2. A comunidade local como um lugar, fornecendo um meio familiar.

3. Cosmologias religiosas como modos de crenças e práticas rituais fornecendo uma interpretação providencial da vida e humana e da natureza.

4. Tradição como um meio de conectar presente e futuro; orientada para o passado em tempo reversível.

MODERNAS
Contexto geral: relações de confiança em sistemas abstratos

1. Relações pessoais de amizade ou intimidade sexual como meios de estabilizar laços sociais.

2. Sistemas abstratos como meios de estabilizar relações através de extensões indefinidas de tempo-espaço.

3. Pensamento orientado para o futuro como um modo de conectar passado e presente.

AMBIENTE de RISCO
PRÉ-MODERNAS
1. Ameaças e perigos emanando da natureza, como a prevalência de doenças infecciosas, insegurança climática, inundações ou outros desastres naturais.

2. A ameaça de violência humana por parte de exércitos pilhadores, senhores de guerras locais, bandidos ou salteadores.

3. Risco de uma perda da graça religiosa ou de influência mágica maligna.

MODERNAS

1. Ameaças e perigos emanado da reflexividade da modernidade.



2. A ameaça de violência humana a partir da industrialização da guerra.



3. A ameaça de falta de sentido pessoal derivada da reflexividade da modernidade enquanto aplicada ao eu.

Considerações finais

A análise de Anthony Giddens sobre a modernidade oferece-nos a possibilidade de compreender o mundo em que vivemos, nossas inseguranças, incertezas e, inclusive, as transformações nos espaços da intimidade. Contudo, sua obra e opções políticas, em especial sua análise sobre a terceira via (2001a e 2001b), geram resistências e determinados leitores não conseguem romper o olhar preconceituoso. Giddens é um daqueles autores que merecem ser lidos e estudados – nem que seja apenas para aprimorar os nossos argumentos críticos. Para divergir é preciso, primeiro, compreender.


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[1] “As características desincorporadas dos sistemas abstratos significam uma constante interação com os “outros ausentes” – pessoas que nunca vimos ou encontramos, mas cujas ações afetam diretamente características da nossa própria vida”. (Giddens, 1997: 111)

[2] “A apropriação do conhecimento não ocorre de uma maneira homogênea, mas é com freqüência diferencialmente disponível para aqueles que estão em posição de poder, que são capazes de colocá-lo a serviço de interesses seccionais”. (GIDDENS, 1991: 50)

[3] Os pensadores iluministas “acreditavam, com bastante propriedade, que quanto mais viéssemos a conhecer sobre o mundo, enquanto coletividade humana, mais poderíamos controlá-lo e direcioná-lo para nossos próprios propósitos”. (Giddens, 1997: 219)

[4] “E, em certo sentido, isso realmente ocorreu: as perspectivas cognitivas foram, na verdade, muito substancial e dramaticamente reformadas. Entretanto, a forma emocional da tradição foi deixada mais ou menos intacta”. (Id.: 86-87)

[5] De fato, a certeza iluminista foi questionada em suas próprias origens. Jean-Jacques Rousseau, em seu Discurso sobre as Ciências e as Artes, enfatiza a moral e os sentimentos, deixando a razão em segundo plano. Ou seja, ele rompe com a supervalorização do conhecimento racional. Rousseau questiona até mesmo o tipo de conhecimento ministrado às crianças e aos jovens: “Vejo em todos os lugares estabelecimentos imensos onde a alto preço se educa a juventude para aprender todas as coisas, exceto seus deveres. Vossos filhos ignoram a própria língua, mas falarão outras que em lugar algum se usam; saberão compor versos que dificilmente compreenderão; sem saber distinguir o erro da verdade, possuirão a arte de torná-los ambos irreconhecíveis aos outros, graças a argumentos especiosos; mas não saberão o que são as palavras magnanimidade, eqüidade, temperança, humanidade e coragem; nunca lhes atingirá o ouvido a doce palavra pátria e, se ouvem falar de Deus, será menos para reverenciá-lo do que para temê-lo. Preferiria, dizia um sábio, que meu aluno tivesse passado o tempo jogando péla, pois pelo menos o corpo estaria mais bem disposto. Sei que é preciso ocupar as crianças e que a ociosidade constitui para elas um perigo a evitar. Que deverão, pois, aprender. Eis uma questão interessante. Que aprendam o que devem fazer sendo homens e não o que devem esquecer”. (ROUSSEAU, 1978: 347-48)

[6] “O termo vem do hindu Jagannãth, “senhor do mundo”, e é um título de Krishna; um ídolo desta deidade era levado anualmente pelas ruas num grande carro, sob cujas rodas, contas-se, atiravam-se seus seguidores para serem esmagados”. (Giddens, 1991: 133

sexta-feira, março 31, 2006

A homofobia internalizada e os comportamentos para a saúde numa amostra de homens homossexuais


INTRODUÇÃO

O conceito de Homofobia Internalizada tem sido apresentado por muitos autores como um factor central na manifestação de vários aspectos relacionados com a saúde e com a doença entre pessoas homossexuais.
Definido como medo à própria homossexualidade, a homofobia internalizada é um fenómeno cultural, que não é universal, nem toma as mesmas formas ou o mesmo significado em diferentes grupos sociais.
O objectivo do presente trabalho é investigar como é que a existência de homofobia internalizada condiciona a adopção de comportamentos para a saúde, comparativamente entre sujeitos homossexuais com maiores e menores níveis de homofobia internalizada.
Para investigar esta questão, delineou-se um estudo comparativo entre dois grupos (um de homens homossexuais com maiores níveis de homofobia internalizada e outro com homens homossexuais com menores níveis de homofobia internalizada), prefazendo um total de 304 indivíduos da cidade de Lisboa.
Muito antes de perceberem a natureza da sua orientação sexual, os homossexuais internalizam uma série de mensagens correspondentes aos valores negativos face à homossexualidade. Muitas vezes, reconhecem os seus sentimentos de atracção por pessoas do seu próprio sexo e iniciam um processo psicológico de auto-rotulação que não é acompanhado por nenhuma abertura interpessoal das suas próprias emoções e comportamentos. Mas, iniciado o processo de autorotulação, os efeitos de dano psicológico ocasionados pelas tais mensagens negativas tomam lugar.
Meyer e Dean (1998) definem Homofobia Internalizada como «o direccionamento das atitudes sociais negativas para o self da pessoa gay, levando à desvalorização desse self e resultantes conflitos internos e uma auto-imagem empobrecida».
Os gays, as lésbicas e os bissexuais representam uma minoria sexual. Como tal, enfrentam tanta discriminação, estigmatização e violência que é apenas natural que, como resultado, lhes ocorram elevados níveis de stress e ansiedade. Tanto mais é assim que a nossa sociedade heterossexista apenas os tolera se não se assumirem e permanecerem para sempre ‘no armário’ (DiPlacido,1998). No entanto, ao contrário das outras minorias sociais, em muitos países (incluindo Portugal) aos homossexuais falta-lhes um reconhecimento constitucional que os proteja da discriminação.
Recentemente, alguns autores têm vindo a salientar a importância do factor do stress das minorias como sendo a componente principal da internalização da homofobia.
A manifestação mais comum da internalização da estigmatização é a sensação de vergonha face à perspectiva de ser identificado como gay(Mondimore, 1998). Esta sensação de vergonha pode ser o resultado do confronto com possíveis ameaças externas e internas e o bem-estar emocional do indivíduo vai depender da maneira como
ele as gere.
Apesar da crença de que os estados emocionais e de atitude influenciam os processos fisiológicos do corpo existirem há muitos séculos, só recentemente é que se obtiveram dados empíricos para o provar. Os estudos de Alameda County tornaram-se clássicos na investigação dos factores que levam as pessoas a atingir, manter e
promover a sua saúde. Estes comportamentos eram os seguintes (Matarazzo, & Leckliter, 1988):

1. Sete ou oito horas de sono por dia;
2. Tomar o pequeno-almoço quase todos os dias;
3. Nunca comer (ou raramente) entre as refeições;
4. Peso ajustado à altura;
5. Nunca fumar cigarros;
6. Consumo moderado (ou nenhum) de álcool;
7. Actividade física regular.

Desde há muito que os investigadores notaram que os comportamentos para a saúde diferem significativamente na sua complexidade entre grupos sociais. Determinantes sociais e demográficos, como o estatuto socio-económico ou o género sexual, devem ser tidos em conta. A par com o apoio social que o indivíduo tenha, talvez o determinante mais importante seja o simples acesso regular a um médico. Outros determinantes têm a ver com a percepção dos sintomas, as cognições e as emoções de uma pessoa.
Parece haver muitos indícios de que a existência de Homofobia Internalizada entre os gays compromete algumas dimensões da saúde física e mental dos indivíduos.
Assim, pareceu-nos fundamental explorar em que sentido isso acontece numa amostra de homossexuais da cidade de Lisboa, tentando perceber que factores ou dimensões estavam em jogo.
Pretendeu-se, então, com este trabalho, responder à seguinte questão de investigação: Será que existem diferenças significativas entre homossexuais com mais Homofobia Internalizada e homossexuais com menos Homofobia Internalizada no que diz respeito à adopção de comportamentos para a saúde? Se sim, de que maneira é que essa diferença se manifesta? Importava também saber se existiam diferenças significativas na adopção de comportamentos para a saúde quando a Homofobia Internalizada estava apenas condicionada por factores internos versus factores externos ou factores globais.


um trabalho da autoria de:
HENRIQUE PEREIRA (Psicólogo e docente na Universidade da Beira Interior)
ISABEL LEAL (Psicóloga e docente no Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa)

Ler o artigo por inteiro

quarta-feira, março 15, 2006

Um projecto em de(Curso)


Nas sociedades tradicionais as gerações mais velhas permanecem integradas nos sistemas económicos e sociais de produção, ocupando-se de pequenas tarefas, sendo que as responsabilidades iam decrescendo à medida que as capacidades iam diminuindo. As trocas entre gerações eram feitas no domínio privado das famílias, sendo a velhice apenas um problema nos casos extremos de pobreza, indigência e doença, deles se ocupando as instituições ligadas à caridade.

A velhice como problema social coloca-se de forma particular às sociedades industriais a partir do momento em que o trabalho passa a ser exterior à residência, desintegrando assim duas dimensões essenciais da vida humana: casa e trabalho.

A institucionalização do sistema de reformas é o primeiro passo para a autonomia financeira dos mais velhos e, por arrastamento, para a emergência da terceira idade como categoria social. Ao chamar a si a responsabilidade social pelos mais velhos, o Estado contribui para que se assista a uma transferência dessa mesma responsabilidade das famílias para uma gestão pública da velhice.

No que à burguesia diz respeito, verificou-se uma alteração da transmissão intergeracional dos bens. de uma situação em que esses bens, constituindo a "herança" eram um factor dominante na determinação das relações intergeracionais, passou-se a uma outra situação em que o factor dominante é o capital escolar atingido.

Quanto aos operários idosos e pobres, foi devido aos problemas sociais causados pela falta de meios pobres de subsistência e devido ao encargo que tais idosos constituiam para os familiares em idade produtiva que se achou por bem institucionalizar um sistema de reformas, para o que muito contribui o movimento e a pressão sindical.

O deslocar dos encargos com as pessoas mais velhas do âmbito privado para a esfera pública vai levar a que os conflitos de interesses entre as forças em presença se desenrolem ao nível da confrontação entre os responsáveis politico-administrativos e os especialistas das instituições. Ou seja, tal confrontação é feita ao nível das relações impessoais e da burocracia, campo do qual o resultado é a gestão pública da velhice e as políticas sociais da terceira idade.


Do meu Projecto de Investigação, licenciatura em Sociologia, 5ºano.

quarta-feira, março 08, 2006

Dia Internacional da Mulher



As mulheres do Século XVIII eram submetidas à um sistema desumano de trabalho, com jornadas de 12 horas diárias, espancamentos e ameaças sexuais

O Dia Internacional da Mulher, 8 de março, está intimamente ligado aos movimentos feministas que buscavam mais dignidade para as mulheres e sociedades mais justas e igualitárias. É a partir da Revolução Industrial, em 1789, que estas reivindicações tomam maior vulto com a exigência de melhores condições de trabalho, acesso à cultura e igualdade entre os sexos. As operárias desta época eram submetidas à um sistema desumano de trabalho, com jornadas de 12 horas diárias, espancamentos e ameaças sexuais.

Dentro deste contexto, 129 tecelãs da fábrica de tecidos Cotton, de Nova Iorque, decidiram paralisar seus trabalhos, reivindicando o direito à jornada de 10 horas. Era 8 de março de 1857, data da primeira greve norte-americana conduzida somente por mulheres. A polícia reprimiu violentamente a manifestação fazendo com que as operárias refugiassem-se dentro da fábrica. Os donos da empresa, junto com os policiais, trancaram-nas no local e atearam fogo, matando carbonizadas todas as tecelãs.

Em 1910, durante a II Conferência Internacional de Mulheres, realizada na Dinamarca, foi proposto que o dia 8 de março fosse declarado Dia Internacional da Mulher em homenagem às operárias de Nova Iorque. A partir de então esta data começou a ser comemorada no mundo inteiro como homenagem as mulheres.





Mulher da vida, minha irmã
Cora Coralina



Mulher da Vida, minha Irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades e
carrega a carga pesada dos mais
torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.
Mulher da Vida, minha irmã.
Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.
Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.
Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre por
aqueles que um dia as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas,
Escorchadas. Discriminadas.
Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos,
pisadas, maltratadas e renascidas.
Flor sombria, sementeira espinhal
gerada nos viveiros da miséria, da
pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes da Terra.
Um dia, numa cidade longínqua, essa
mulher corria perseguida pelos homens que
a tinham maculado. Aflita, ouvindo o
tropel dos perseguidores e o sibilo das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.
A Justiça estendeu sua destra poderosa e
lançou o repto milenar:
“Aquele que estiver sem pecado
atire a primeira pedra”.
As pedras caíram
e os cobradores deram s costas.
O Justo falou então a palavra de eqüidade:
“Ninguém te condenou, mulher...
nem eu te condeno”.
A Justiça pesou a falta pelo peso
do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada,
ela é a muralha que há milênios detém
as urgências brutais do homem para que
na sociedade possam coexistir a inocência,
a castidade e a virtude.
Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.
Sem cobertura de leis
e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa
nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão,
a levante, e diga: minha companheira.
Mulher da Vida, minha irmã.
No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça
do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.
E o juiz da Grande Justiça
a vestirá de branco em
novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida
humilhada e sacrificada
para que a Família Humana
possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrurível
da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.
Mulher da Vida, minha irmã.
Declarou-lhe Jesus:
“Em verdade vos digo
que publicanos e meretrizes
vos precedem no Reino de Deus”.
Evangelho de São Mateus 21, ver.31.


Poesia dedicada, por Coralina, ao Ano Internacional da Mulher em 1975.

terça-feira, março 07, 2006

A Exclusão Social hoje



1. As dimensões da exclusão social

Não se tem a pretensão de desenvolver aqui uma teoria de exclusão social, daí que não se proponha uma discussão substantiva dos conceitos, antes se parta de alguns pressupostos e proposições que, não sendo pacíficos, correspondem, pelo menos, a posições conhecidas e com fundamento científico discutido (1).


Nesse sentido, considera-se aqui a exclusão social, essencialmente como

Uma situação de falta de acesso às oportunidades
oferecidas pela sociedade aos seus membros


Desse modo, a exclusão social pode implicar privação, falta de recursos ou, de uma forma mais abrangente, ausência de cidadania, se, por esta, se entender a participação plena na sociedade, aos diferentes níveis em que esta se organiza e se exprime: ambiental, cultural, económico, político e social.

Daí que a exlusão social seja necessariamente multidimensional e se exprima naqueles diferentes níveis (ambiental, cultural, económico, político e social), não raramente sendo cumulativa, ou seja, compreendendo vários deles ou mesmo todos.

De outra forma, pode-se dizer que a exclusão social se exprime em 6 dimensões principais do quotidiano real dos indivíduos, ao nível (2):


  • do SER, ou seja da personalidade, da dignidade e da auto-estima e do auto-reconhecimento individual;

  • do ESTAR, ou seja das redes de pertença social, desde a família, às redes de vizinhança, aos grupos de convívio e de interacção social e à sociedade mais geral;

  • do FAZER, ou seja das tarefas realizadas e socialmente reconhecidas, quer sob a forma de emprego remunerado (uma vez que a forma dominante de reconhecimento social assenta na possibilidade de se auferir um rendimento traduzível em poder de compra e em estatuto de consumidor), quer sob a forma de trabalho voluntário não remunerado;

  • do CRIAR, ou seja da capacidade de empreender, de assumir iniciativas, de definir e concretizar projectos, de inventar e criar acções, quaisquer que elas sejam;

  • do SABER, ou seja do acesso à informação (escolar ou não; formal ou informal), necessária à tomada fundamentada de decisões, e da capacidade crítica face à sociedade e ao ambiente envolvente;

  • do TER, ou seja do rendimento, do poder de compra, do acesso a níveis de consumo médios da sociedade, da capacidade aquisitiva (incluindo a capacidade de estabelecer prioridades de aquisição e consumo).


A exclusão social é, portanto, segundo esta leitura, uma situação de não realização de algumas ou de todas estas dimensões.

É o “não ser”, o “não estar”, o “não fazer”, o “não criar”, o “não saber” e/ou o “não ter”.

Esta formulação permite ainda estabelecer a relação entre a exclusão social, entendida desta forma abrangente, e a pobreza, que é basicamente a privação de recursos (exprimindo-se nomeadamente ao nível da exclusão social do fazer, do criar, do saber e/ou do ter), ou seja uma das dimensões daquela.



2. Os factores da exclusão social

Da leitura anterior resulta que os factores da exclusão social estão inevitavelmente associados às dimensões em que ela se exprime, ou seja há factores ambientais, culturais, económicos, políticos e sociais na origem das diversas formass de exclusão social.

Do ponto de vista central desta reflexão há que assinalar que, na origem da exclusão social, podem portanto estar factores económicos, ligados ao funcionamento do sistema económico, às relações económicas internacionais, ao sistema financeiro, etc.

Dado o peso dominante da dimensão económica nas sociedades industriais que marcaram a História da Humanidade dos últimos 200 anos (3), pode-se deduzir que os factores económicos têm tido um peso decisivo (embora não único, nem por vezes suficiente) na explicação de grande parte das situações de exclusão social que surgiram nessas sociedades ou por causa delas.

Para o objectivo desta reflexão pode, no entanto, ser útil, dividir os factores de exclusão social em 3 grandes grupos:

  • a) Factores de ordem macro;

  • b) Factores de ordem meso;

  • c) Factores de ordem micro.

a) Os factores de ordem macro são de natureza estrutural, na sua grande maioria, e estão relacionados com o funcionamento global das sociedades: tipo de sistema económico, regras e imposições do sistema financeiro, modelo de desenvolvimento, estrutura e características das relações económicas internacionais, estratégias transnacionais, valores e princípios sociais e ambientais dominantes, paradigmas culturais, condicionantes do sistema político, atitudes e comportamentos face à Natureza, modelos de comunicação e de informação, processos de globalização, etc.

b) Os factores de ordem meso são frequentemente de natureza estrutural, mas também podem resultar de incidências conjunturais.

São normalmente de âmbito mais local, situando-se no quadro das relações e das condições de proximidade que regulam e interferem no quotidiano dos indivíduos.

Podem ter origem em áreas tão diversas como: políticas autárquicas (se discriminatórias, no sentido negativo), características do mercado local de trabalho, modelos de funcionamento localizado dos organismos desconcentrados da Administração Pública, preconceitos sociais e culturais, normas e comportamentos locais, estratégias de exclusão de actores locais (incluindo as associações e outras organizações), etc.

c) Os factores de ordem micro situam-se ao nível individual e familiar e dependem de lacunas e fragilidades experimentadas nos percursos pessoais, de capacidades frustradas ou não valorizadas, de incidências negativas, etc.

Enquanto que os 2 primeiros tipos de factores (macro e meso) se referem às oportunidades oferecidas (ou negadas) pela sociedade, o último centra-se nas capacidades e competências individuais e familiares.

Em todos estes níveis encontramos factores económicos, quer os que estão relacionados com o funcionamento global da sociedade (sistema económico e financeiro, modelo de desenvolvimento, relações económicas internacionais, etc.), quer os que actuam ao nível local (mercado local de trabalho, comportamentos e estratégias empresariais locais, políticas autárquicas com resultados de exclusão económica, etc.), quer os que caracterizam os percursos individuais e familiares (empregos ocupados, situações de desemprego, qualificações profissionais adquiridas ou ausentes, níveis de remunerações, capacidade quisitiva, modelos de consumo, etc).



3. Algumas notas sobre as estratégias de inserção e de inclusão

Uma vez definida e caracterizada a exclusão social, a sua erradicação implica um duplo processo de interacção positiva entre os indivíduos excluídos e a sociedade a que pertencem e que passa por 2 caminhos:

o dos indivíduos que se tornam cidadãos plenos;

o da sociedade que permite e acolhe a cidadania.

A este duplo processo chamamos integração (na sociedade), não no sentido de “assimilação” (4) , mas antes no entendimento da teoria dos sistemas que permite considerar a integração como um processo de interacção entre uma das partes e outras partes de um todo e com este todo, assumindo essa interacção episódios de interdependência positiva (solidariedade), mas também de tensão e confronto (conflitualidade).

Nesse sentido, a integração (social) de que aqui falamos é o processo que viabiliza o acesso às oportunidades da sociedade, a quem dele estava excluído, permitindo a retoma da relação interactiva entre uma célula (o indivíduo ou a família), que estava excluída, e o organismo (a sociedade) a que ela pertence, trazendo-lhe algo de próprio, de específico e de diferente, que o enriquece e mantendo a sua individualidade e especificidade que a diferencia das outras células que compõem o organismo.

Nestes termos, a integração é sempre uma opurtunidade de mais valia para a sociedade, através do seu enriquecimento pela diversidade (5).

Como duplo processo que foi referido, a integração associa duas lógicas:

- a do indivíduo que passa a ter acesso às oportunidades da sociedade, podendo escolher se as utiliza ou não (em última análise, ninguém pode ser obrigado a sair da sua situação de exclusão social, apenas se podendo viabilizar e aumentar as possibilidades de escolha) – a este processo (se a opção for pela positiva) chamaremos de inserção na sociedade;

- a da sociedade que se organiza de forma a abrir as suas oportunidades para todos, reforçando-as e tornando-as equitativas – a este processo chamaremos de inclusão.

Inserção e inclusão são assim as duas faces de um processo (duplo) que é o da integração.

Ao nível dos factores de exclusão social antes enunciados, isto implica:

- remover ou, pelo menos, minimizar os factores macro e meso e, por outro lado, reforçar e maximizar as oportunidades permitidas pela sociedade, o que remete para o conceito de “inclusão” e de “sociedade inclusiva”;

- remover ou, pelo menos, minimizar os factores micro e, sobretudo, promover as capacidades e competências individuais e familiares, o que faz apelo ao conceito de “inserção” e de “empowerment”.

Quanto a este último aspecto, e se se retomar as dimensões da exclusão social atrás apresentadas, estamos a falar da promoção e reforço das capacidades e competências a 6 níveis:

  • Competências do SER, ou seja competências pessoais: reforço de auto-estima e da dignidade, auto-reconhecimento, etc.;

  • Competências do ESTAR, ou seja competências sociais e comunitárias: reactivação ou criação das redes e dos laços familiares, de vizinhança e sociais mais gerais, retoma ou desenvolvimento das interacções sociais, etc.;

  • Competências do FAZER, nomeadamente competências profissionais: qualificações profissionais, aprendizagem de tarefas socialmente úteis, partilha de saberes-fazeres, etc.;

  • Competências do CRIAR, ou seja o que podemos designar por competências empresariais: capacidade de sonhar e de concretizar alguns sonhos, assumindo riscos, protagonizando iniciativas, liderando projectos (mesmo os mais simples) de qualquer tipo, etc.;

  • Competências do SABER, ou seja competências informativas: escolarização, outras aprendizagens de saberes formais e informais, desenvolvimento de modelos de leitura da realidade e de capacidade crítica, fundamentação das decisões, etc.;

  • Competências do TER, consubstanciadas no que se poderia apelidar de competências aquisitivas: acesso a um rendimento e sua tradução em poder de compra, capacidade de priorizar e escolher consumos, etc.

    Se, como se viu, os factores económicos podem ser decisivos na explicação de grande parte das situações de exclusão social, consequentemente também a dimensão económica da integração assume importância crucial, quer na perspectiva da inserção (processo assumido pelos indivíduos e famílias), quer na da inclusão (mudança da sociedade que reforça e abre as oportunidades que oferece aos seus membros, se torna mais democrática e equitativa e viabiliza a cidadania de forma generalizada).



    NOTAS

    (1) Por autores como Atkinson e Peter Townsend, ou, em Portugal, Amélia Bastos, Alfredo Bruto da Costa, João Ferreira de Almeida, José Pereirinha, Leonor Vasconcelos, Luís Capucha e Manuela Silva.
    (2) Neste ponto propõe-se uma formulação da nossa responsabilidade.

    (3) E que, por isso, é conhecido pela Era do “Homo Oeconomicus”

    (4) Como em geral é entendido o conceito de integração pelos cientistas sociais em Portugal, o que os tem conduzido a rejeitá-lo e a substituí-lo, conforme as origens disciplinares, por conceitos como “inserção” e “inclusão”.

    (5) Que como a Biologia e a Ecologia mostram, é um dos factores decisivos da Vida.




  • ROGÉRIO ROQUE AMARO

    quinta-feira, março 02, 2006

    Incidente nas ruas do Porto...

    Como primeiro post meu (eheheheh) deixo-vos com a reflexão do Prof. Boaventura Sousa Santos relativamente ao recente incidente de homicidio de um transexual sem-abrigo, nas ruas do Porto:


    "As Escalas do Despotismo


    Um grupo de jovens menores maltratou sadicamente, apedrejou e espancou até à morte o transexual brasileiro Gisberto, um sem abrigo de 45 anos. Aconteceu no Porto. Há poucos anos, o líder indígena Guadino Pataxó tinha ido a Brasília participar numa marcha a favor da reforma agrária. A noite estava amena e decidiu dormir no banco da paragem de autocarro. De madrugada, um grupo de jovens acercou-se dele enquanto dormia, regou-o com gasolina e queimou-o vivo. Na polícia, confessaram que o fizeram para se divertirem e pediram desculpas por não saber que ele era um líder indígena; pensavam que ele era "um qualquer sem abrigo". Que há de comum entre estes dois casos de violência gratuita e as caricaturas dinamarquesas? A mesma incapacidade de reconhecer o outro como igual, a mesma degradação do outro ao ponto de o transformar num objecto sobre o qual se pode exercer a liberdade e o gozo sem limites, a mesma conversão do outro num inimigo perturbador mas frágil que se pode abater com economia das regras da civilidade, sejam elas as que governam a paz ou as que governam a guerra.
    As sociedades modernas assentam no contraste social, a ideia de uma ordem social assente na limitação voluntária da liberdade para tornar possível a vida em paz entre iguais. As ideias de cidadania e de direitos humanos são a expressão deste compromisso. As tensões entre o princípio da liberdade e o princípio da igualdade e as contradições entre eles e as práticas sociais que os desmentem constituem o cerne da política moderna. Como o grupo social dos reconhecidos como iguais era inicialmente muito restrito (os burgueses do sexo masculino), a grande maioria da população (mulheres, trabalhadores, escravos, povos colonizados) estava fora do contrato social e, portanto, sujeita ao despotismo dos que tinham poder sobre ela. As lutas sociais dos últimos duzentos anos têm sido lutas por inclusão no contrato social. Com o tempo, as lutas pela igualdade socio-económica, protagonizadas pelos trabalhadores, foram complementadas pelas lutas pelo reconhecimento das diferenças, por parte das mulheres, das minorias étnicas e religiosas, dos homossexuais, etc.
    Este movimento ascendente de inclusão e de civilidade está hoje bloqueado por via de uma combinação perversa entre capitalismo neoliberal e suas consequências (exclusão social, migrações) e a teologia política conservadora hoje dominante nas três religiões abraâmicas (cristianismo, judaísmo e islamismo). Paulatinamente, a solidariedade politicamente organizada é substituída pelo individualismo, e a filantropia e a celebração da diversidade, pela intolerância: em vez de cidadãos, consumidores e pobres; em vez de justiça social, a salvação; em vez do ecumenismo, o dogmatismo; em vez da hospitalidade, a xenofobia; em vez de conflitos institucionalizados, a violência do crime e da guerra.
    O despotismo pré-moderno está, assim, a ser reinventado na sociedade e nos indivíduos, tanto nas macro-relações entre países ou religiões, como nas micro-relações na família, na empresa ou na rua. Os poderosos e os despossuídos são degradados por igual, ainda que com consequências muito diferentes. Os despossuídos recorrem à violência ilegal, tanto contra os poderosos como contra os ainda mais despossuídos. Os poderosos recorrem à violência que legalizam pela invocação de princípios que, sem surpresa, estão sempre do seu lado. São Tomás de Aquino diria deles o que disse dos cristãos do seu tempo. Que padecem do habitus principiorum:o hábito de invocarem obsessivamente os princípios para se poderem dispensar da sua observância na prática."

    Publicado na Visão em 2 de Março de 2006